Curso de Direto Penal - Código Nacional de Trânsito Lei Seca
Professor Luiz Flávio Gomes
Aulas exibidas nos dias 25, 26, 27, 28 e 29 de agosto de 2008
LEI SECA: ACERTOS, EQUÍVOCOS, ABUSOS E IMPUNIDADE
LUIZ FLÁVIO GOMES
Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Diferença entre a infração administrativa (art. 165) e a penal (art. 306)
O art. 165 do CTB, ao disciplinar a infração administrativa de embriaguez ao volante, diz: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação”.
O art. 306, ao cuidar do delito de embriaguez ao volante, estabeleceu o seguinte: “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Infere-se o seguinte: (1) duas são as condutas incriminadas no art. 306: (a) conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas e (b) conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; (2) a primeira conduta não pode ser interpretada como infração de perigo abstrato (sim: é uma infração de perigo concreto indeterminado, porque exige uma condução anormal, ou seja, exige o “estar sob a influência de álcool” + direção anormal).
Se ambas exigem “estar sob a influência”, qual é a diferença entre elas? Temos que cuidar do assunto por partes.
No que diz respeito à embriaguez decorrente de álcool depreende-se o seguinte: por força do novo art. 276 qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeitaria o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código (ou seja: pela literalidade do dispositivo, ocorre infração administrativa com qualquer concentração de álcool no sangue). A infração penal, por seu turno, exige seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue (art. 306). O índice de tolerância (pelo que se tem noticiado) é de 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue.
Conclusão: até 0,2 decigramas: margem de tolerância (fato atípico); de 0,2 a 0,6 decigramas: infração administrativa (art. 165). Igual ou mais que seis decigramas: infração penal (art. 306), se o agente dirigia o veículo de forma anormal (zig-zag, v.g.), colocando em risco a segurança viária. E se o sujeito dirigia corretamente? É pura infração administrativa.
A primeira diferença entre a infração administrativa e a penal, como se vê, está no nível de concentração de álcool no sangue. O fator distintivo (por enquanto) é meramente quantitativo. A quantidade de álcool é o primeiro critério diferenciador.
A segunda diferença está no seguinte: o crime (do art. 306) exige não só um condutor embriagado (com 0,6 decigramas, no mínimo) senão também uma condução anormal (que coloca em risco a segurança viária). E se o sujeito dirigia com menos de seis decigramas de álcool por litro de sangue, porém, normalmente (corretamente) – essa, aliás, é uma situação absolutamente corriqueira? Trata-se da infração administrativa do art. 165, visto que ela exige (só) “estar sob a influência de álcool” (ou seja: uma condição pessoal alterada). Não se trata de infração penal porque a concentração era menos de seis decigramas.
Toda quantidade de álcool no sangue já é suficiente para a infração administrativa? Não. A resposta está no parágrafo único do novo art. 276, que diz: “Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” Quantidade insignificante de álcool no sangue (decorrente do consumo de um bombom com licor, por exemplo) não autoriza nem sequer a configuração da infração administrativa. A polícia vem tolerando o índice de 0,2 decigramas.
E se o sujeito tinha concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas, mas dirigia seu veículo normalmente (corretamente, sem nenhum deslize viário)? Não se trata de infração penal (art. 306). Cuida-se, sim, de infração administrativa (art. 165). O crime exige embriaguez + direção anormal (risco concreto para a segurança viária). Risco concreto (direção em zig-zag, v.g.). Em síntese: condutor anormal + condução anormal.
Não se admite presunção contra o réu (se estava bêbado, automaticamente se presumiria que cometeu infração penal). Direção normal, ainda que com seis decigramas ou mais de álcool, não é infração penal. É administrativa. A infração administrativa não exige direção anormal. Só o “estar sob a influência”. Isso é perigo abstrato. Que se admite para a infração administrativa, não para a penal.
No que concerne à segunda parte do art. 306 (que coincide com a segunda parte do art. 165) temos o seguinte: tanto a infração administrativa (art. 165) como a infração penal (art. 306) exige dirigir “sob a influência de outra substância psicoativa que determine dependência”. Estar “sob a influência” no âmbito administrativo só exige uma coisa: um sujeito alterado em razão da substância que ingeriu; no âmbito penal exige duas coisas: estar alterado + direção anormal.
Conclusão final:
1. embriaguez por álcool ou outra substância em quantidade absolutamente insignificante (a polícia vem adotando o seguinte critério: menos de 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue é insuficiente para configurar a infração administrativa): fato absolutamente atípico (ou seja: não é infração administrativa nem penal);
2. embriaguez por álcool: de dois a seis decigramas por litro de sangue (direção normal ou anormal): infração administrativa (art. 165); com seis decigramas ou mais e, além disso, direção anormal: infração penal (art. 306); com seis decigramas ou mais, mas com direção normal: infração administrativa (art. 165).
3. intoxicação por outras drogas: com quantidade absolutamente insignificante: conduta atípica (não é infração penal nem administrativa); com direção normal (o agente estava drogado, mas dirigia corretamente): infração administrativa (art. 165); com direção anormal (agente drogado + direção anormal – em zig-zag, v.g.: infração penal - art. 306).
Não pode haver crime de perigo abstrato
O art. 306 do CTB não pode ser interpretado (secamente) como delito de perigo abstrato. O perigo abstrato é válido somente no campo administrativo. É inadmissível no âmbito do Direito penal (porque viola o princípio da ofensividade - cf. GOMES, L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). A ofensividade autoriza a antecipação da tutela penal para campos prévios (Vorfeldkriminalisierung), ou seja, permite o delito de perigo, mas sempre deve ser o concreto (não o abstrato). Nisso é que reside uma das diferenças entre a infração administrativa e a penal. Eventual interpretação literal da primeira parte do art. 306 retrataria exemplo de administrativização do Direito penal. Confundiria Direito administrativo com Direito penal.
Contentar-se, no âmbito penal, com o simples perigo abstrato significa dar curso ao abominável Direito penal do inimigo, que pune o agente sem o devido respeito às garantias mínimas do Direito penal (estando, dentre elas, o princípio a ofensividade). O Direito penal nazista fez muito uso dessa técnica legislativa consistente na infração de perigo abstrato (ou seja: mera desobediência à norma, sem nenhuma preocupação com a ofensa ao bem jurídico). Não podemos repetir o que historicamente se tem como abominável. Não podemos conceber como válida uma interpretação nazista do Direito penal.
Conclusão: ambos os dispositivos (arts. 165 e 306) exigem o “estar sob a influência” de álcool ou outra substância (de acordo com nossa interpretação fundada na razoabilidade). O art. 306, também em sua primeira parte, destarte, não é um delito de perigo abstrato. Exige mais que uma condição (o estar bêbado), além disso, a comprovação de uma direção anormal (zig-zag, v.g.), que espelha o chamado perigo concreto indeterminado (ou seja: basta a comprovação da direção anormal, não se requerendo uma vítima concreta).
Aspectos probatórios controvertidos
O artigo 277 do CTB cuida dos meios probatórios que podem conduzir à constatação da embriaguez ao volante. Por força da Lei 11.705/2008, agregou-se ao art. 277 um novo parágrafo (§ 2º) que diz o seguinte:
“§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”.
O art. 277 diz: “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado”.
O § 1o desse mesmo artigo diz: “Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos”.
As três formas clássicas de se provar a embriaguez ao volante são: (a) exame de sangue; (b) bafômetro e (c) exame clínico. No novo § 2o o legislador ampliou a possibilidade da prova, falando em outras provas em direito admitidas.
A prova da embriaguez não se restringe, mais, às clássicas formas. Outras provas em direito admitidas podem ser produzidas, para que sejam constatados os notórios sinais de embriaguez, a excitação ou o torpor apresentado (s) pelo condutor. Por exemplo: prova testemunhal.
Em matéria de prova da embriaguez há, de qualquer modo, uma premissa básica a ser observada: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de não-autoincriminação, que vem previsto de forma expressa no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que possui valor constitucional – HC 87.585-TO – cf. GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valério, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, São Paulo: RT, 2008). O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova (contra ele mesmo). Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro (porque essas duas provas envolvem o corpo humano do suspeito e porque exigem dele uma postura ativa).
Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais) ou a prova testemunhal.
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Mas não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Disso cuida o § 3º (novo) que diz:
“§ 3o (do art. 277). Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.”
A leitura rápida desse dispositivo pode levar o intérprete a equívocos. O texto legal disse mais do que podia dizer. Veremos em seguida. Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência (quando houver recusa ao exame de sangue, ao bafômetro ou ao exame clínico). Não é isso, propriamente, o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165.
Quando elas incidiriam? Pela letra da lei, quando o condutor recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do artigo. Na verdade, não é bem assim (a lei disse mais do que devia). Note-se que todo suspeito tem direito de não produzir prova contra si mesmo. Logo, não está obrigado a fazer exame de sangue ou soprar o bafômetro. Nessas duas situações, por se tratar de um direito, não há que se falar em qualquer tipo de sanção (penal ou administrativa).
Conclusão: o § 3º que estamos comentando só tem pertinência em relação ao exame clínico. A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não está sujeita a nenhuma sanção. Quando alguém exercita um direito (direito de não-autoincriminação) não pode sofrer qualquer tipo de sanção. O que está autorizado por uma norma não pode estar proibido por outra.
Lei seca gera impunidade
As polêmicas geradas pela famosa “lei seca” (Lei 11.705/2008) ainda não terminaram. Os objetivos fixados pelo legislador foram: 1) estabelecer alcoolemia zero (no que diz respeito à infração administrativa); 2) tratar o embriagado com rigidez máxima. A fiscalização severa logo após a edição da lei conseguiu mobilizar a sociedade. Isso está correto e todos nós apoiamos, desde que não haja abusos. Na parte criminal, entretanto, como bem ponderou Aldo de Campos Costa (no portal www.lfg.com.br) a nova lei é extremamente benéfica aos motoristas embriagados.
A questão é simples: antes do advento da nova lei o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) não exigia nenhuma taxa de alcoolemia. Bastava a existência de um condutor anormal (dirigir sob a influência do álcool) e uma direção anormal (que coloca em risco a segurança viária). Agora, depois da Lei 11.705/2008, só existe crime quando a concentração de álcool no sangue atinge o nível de 0,6 decigramas.
Conclusão: todas as pessoas que estão sendo processadas ou mesmo que já tenham sido condenadas pelo delito do art. 306 cometido até o dia 19.06.08, desde que tenham sido surpreendidas com menos de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue acham-se “anistiadas”. Todas! Houve abolição do delito. Em outras palavras: o que antes era delito se transformou em infração administrativa. Nenhuma conseqüência penal pode subsistir para esses motoristas. A lei seca trouxe lá sua surpresa: na parte criminal, beneficiou todos os processados ou condenados.
Se a nova lei vai alcançar seu objetivo de reduzir o número de mortes no Brasil não sabemos, o que é certo, desde logo, é que ela (pela sua redação completamente equivocada) veio beneficiar milhares de motoristas embriagados que foram condenados ou que estão sendo processados pelos delitos que cometeram.
Mas a famosa “lei seca” não beneficiou somente os que cometeram delito até o dia 19.06.08. Ela é, também, extremamente favorável aos que vão delinqüir daqui para frente. Vejamos: as duas únicas formas correntes de se comprovar no Brasil a taxa de dosagem alcoólica são: exame de sangue e bafômetro. A esses dois meios de prova o motorista suspeito não está obrigado a se submeter, porque ninguém é obrigado a ceder seu corpo para fazer prova contra si mesmo (princípio da não auto-incriminação).
E certo que existem outras formas de se comprovar a embriaguez: exame clínico, fotos, prova testemunhal. Mas nenhum desses meios consegue definir (com precisão) a quantidade de álcool no sangue. Logo, se o motorista recusa o exame de sangue e o bafômetro (o que é um direito seu, diga-se de passagem, não podendo ser punido nem sequer administrativamente por essa recusa), ficará praticamente impossível ao poder público comprovar o nível de dosagem alcoólica no motorista.
Conclusão: sem a prova da materialidade do delito nem sequer prisão em flagrante pode haver. De outro lado, sem tal materialidade, não há como comprovar a existência do crime. Havendo prova de que o agente estava bêbado mas não se comprovando o nível de dosagem alcoólica, pune-se o sujeito pela infração administrativa, mas não há que se falar em delito.
A lei seca, como se vê, teve a virtude de sacudir a polícia e, em conseqüência, a sociedade brasileira. Na sua parte administrativa (que é muito boa), desde que combinada com a severa fiscalização que está acontecendo, ela pode gerar uma nova cultura, a de jamais dirigir depois de beber. Tudo isso é muito positivo. Na sua parte criminal, no entanto, foi um desastre: beneficiou não só os delinqüentes pretéritos como criou uma forma de “anistia” para todos os criminosos futuros.
A intenção do legislador foi a de endurecer o Código de Trânsito contra todos os motoristas bêbados (que são responsáveis pela maior parte das 35 mil mortes por ano no Brasil). Mas uma coisa é o que o legislador pretende fazer e outra muito distinta é o que ele escreve nas leis. A técnica legislativa no nosso país é extremamente deficiente.
Exageros e equívocos na interpretação da lei seca
A tragédia gerada no Brasil pelos acidentes de trânsito está devidamente quantificada: cerca de 35 mil mortes por ano, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e 22 bilhões de reais por ano só para cobrir os gastos com os acidentes das estradas federais. Política de tolerância zero: essa é a bandeira da Lei 11.705/2008. Mas estão ocorrendo muitos exageros, equívocos e abusos.
1º) Quantidade ínfima de álcool no sangue deve ser desconsiderada. Uma pessoa chegou a ser flagrada depois de ter ingerido dois bombons com licor. Isso é um exagero. Por mais que se queira evitar tantas mortes no trânsito brasileiro (mais de 35 mil por ano), não pode nunca a administração pública atuar com falta de razoabilidade. Quem usa um anti-séptico bucal não pode sofrer nenhum tipo de sanção. A infração administrativa do art. 165 exige estar sob a influência do álcool ou outra substância psicoativa.
Nem toda quantidade de álcool no sangue é suficiente para configurar a infração administrativa do art. 165. O parágrafo único do novo art. 276 diz: “Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” Nesse caso o sujeito deve ser liberado e o carro também. Não se aplica multa e não se fala em prisão. Não é necessário que uma terceira pessoa venha conduzir o veículo.
2º) Um grave equívoco que deve ser evitado consiste em prender em flagrante o sujeito todas as vezes que esteja dirigindo com seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue (0,3 no bafômetro – que equivale a dois copos de cerveja). A existência do crime do art. 306 pressupõe não só o estar bêbado (sob a influência do álcool ou outra substância psicoativa), senão também o dirigir anormalmente (em zig-zag, v.g.). Ou seja: condutor anormal (bêbado) + condução anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).
Não se pode nunca confundir a infração administrativa com a penal. Aquela pode ter por fundamento o perigo abstrato. Esta jamais. O Direito penal atual, fundado em bases constitucionais, é dotado de uma série de garantias. Dentre elas está a da ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa (concreta) ao bem jurídico protegido. Constitui grave equívoco interpretar a lei seca “secamente”. Não há crime sem condução anormal. A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um abuso patente, que deve ser corrigido prontamente pelos juízes.
Em síntese: quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue, com menos ou mais que seis decigramas) mas não chega a perturbar a segurança viária, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante. O agente, nesse caso, sofre as conseqüências administrativas previstas no art. 165 do CTB (multa, suspensão da habilitação etc.), mas não pode ser preso em flagrante, não há que se falar em fiança etc. Claro que o carro fica apreendido até que um terceiro, sóbrio, venha a conduzi-lo. Mas nem sequer é o caso de se ir à Delegacia de Polícia.
3º) A prova da embriaguez se faz por meio de exame de sangue ou bafômetro ou exame clínico ou outros meios. A premissa básica aqui é a seguinte: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo. O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova. Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro. Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais).
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência. Isso é equivocado. Não é isso o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Sua redação é a seguinte: “Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”.
Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165 (e mesmo assim, somente quando houver recusa ao exame clínico). A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não pode sujeitar o motorista a nenhuma sanção, porque ele conta com o direito constitucional de não se autoincriminar.
4º) A fiscalização intensa da polícia nos últimos dias veio comprovar que ela é que é fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis mais duras são suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da efetiva punição (infalibilidade da pena), conscientização, educação e engenharia.
5º) O legislador adotou a política da tolerância zero, mas ainda há graves falhas na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução homicida (que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total menosprezo à vida alheia. Por exemplo: dirigir veículo na contramão numa rodovia).
Há muito ainda que se fazer para aprimorar a legislação brasileira. Temos que declarar “guerra” contra as 35 mil mortes por ano no trânsito. Mas tudo tem que ser feito sem exageros e sem abusos. Não queremos viver perigosamente nas ruas e estradas brasileiras, mas também não estamos dispostos a suportar os excessos do poder público, que só pode atuar legitimamente dentro da razoabilidade.
Lei seca: fiscalização e menos mortes. Pelo fim das crendices popular e jornalística
Depois da lei seca (vigente desde o dia 20.06.08) reduziram-se os acidentes de trânsito em praticamente todos os Estados brasileiros (15,3% só no Estado de S. Paulo). Nas estradas federais, 14,5%. As mortes também: 8,8% no Estado de S. Paulo e 63% na sua capital. E os custos hospitalares? Economia de R$ 4,5 milhões, em trinta dias, considerando-se os trinta hospitais estaduais da região metropolitana de S. Paulo (de um mês para outro caíram os atendimentos drasticamente: de 9.102 para 4.449). A que se deve tanta diminuição (já extraordinária, embora possa aumentar ou ser maior em algumas outras cidades)?
A crendice popular e, em geral, jornalística (midiática) diz: “aos rigores da nova lei”, “passou a ser crime dirigir com qualquer quantidade de álcool”, “antes, só com 0,6 decigramas o motorista era punido” etc. Quantos absurdos, quantas desinformações! As
penas previstas na nova lei (nos arts. 165 e 306) são exatamente as mesmas da lei anterior. Então a lei nova não aumentou as penas? Não. Ela não é mais rigorosa que a anterior? Não. Está sendo “vendida” midiaticamente como mais dura, mas não é. Nisso reside um grande equívoco informativo (que ilude o imaginário popular).
E por que essa lei nova “pegou”? Intensa fiscalização e certeza da punição (isso nada mais é que a infalibilidade da sanção, que já era reivindicada por Beccaria em 1764). O quê, então, funciona (what works)? É a lei dura (mas quase nunca aplicada) ou a fiscalização (controle certo)? A resposta é óbvia: fiscalização e infalibilidade da punição. É dizer: a lei, por mais severa que seja, sem fiscalização (sem controle) não funciona preventivamente (a lei dos crimes hediondos constitui a prova mais contundente disso no território brasileiro).
Sem a nova lei poderiam ter sido reduzidos os índices escabrosos de mortes no Brasil (35 mil por ano)? Sim. E por que isso não ocorreu antes? Por falta de fiscalização e ausência da certeza da punição. Já existia lei seca (antes) no nosso país? Sim. A tolerância zero já tinha sido aqui implantada legalmente? Sim, desde 2006 (por força da Lei 11.275/2006). Então o Código de Trânsito (em sua redação original, de 1997) era mais tolerante com o motorista embriagado? Sim (permitia até 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue). Foi a partir de 2006 que essa grande margem de tolerância acabou. E por que a Lei 11.275/2006 não “pegou”? Você já sabe a resposta: falta de fiscalização.
A moderna Criminologia nos mostra que é a fiscalização e a punição certa que conduzem à mudança de hábitos das pessoas. A conscientização só acontece quando há percepção de que a regra é “pra valer”. Qual é a maior prova disso? A redução dos acidentes, dos atendimentos hospitalares e das mortes. Há alguma outra prova? Sim. A lei nova não “pegou” em algumas capitais: Porto Velho, Macapá, Palmas, Cuiabá e Campo Grande, que, segundo a Folha de S. Paulo de 23.07.08, p. C4, continuam com número de morte equivalente às cidades africanas, consideradas uma calamidade pela ONU. Por que não “pegou”? Por total falta de estrutura e ausência de fiscalização.
A lei nova é inconstitucional (como alguns juízes estão reconhecendo, em suas liminares)? Em parte sim, em parte não. Quando ela pune o motorista (embora com penas administrativas) por recusar o exame de sangue ou o bafômetro, sim (é inconstitucional). Por quê? Porque todos os cidadãos brasileiros, por força do art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não são obrigados a se auto-incriminar, ou seja, não são obrigados a ceder seu corpo ou parte dele (ainda que seja um só sopro) para fazer prova contra eles mesmos. Bafômetro (que exige participação ativa do suspeito e intervenção do seu corpo) não é a mesma coisa que mostrar a carteira de habilitação.
O art. 306 do Código de Trânsito, com a redação dada pela nova lei seca, é inconstitucional? Parcialmente sim porque ele, ao presumir generalizadamente que o motorista, com 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, (sempre) está embriagado, desconsiderou que as pessoas são diferentes (o álcool produz efeitos diversos em cada sujeito, tudo dependendo da sua altura, peso, sexo etc.). Ou seja: tratou pessoas desiguais de forma igual. Isso viola o princípio da igualdade, que exige tratar os desiguais desigualmente.
Eliminada (do art. 306) a exigência de 0,6 decigramas de álcool o crime desaparece? Não. Mas (com isso) sua redação ficaria idêntica à do art. 165 (que cuida da infração administrativa)? Sim. E qual seria a diferença entre tais infrações? Aquela (a administrativa) é de perigo abstrato (não interessa, para ela, a forma como o sujeito conduzia o veículo: normal ou anormalmente). Esta é de perigo concreto indeterminado (ou seja: o crime do art. 306 requer um condutor embriagado mais uma direção anormal: em zig-zag, passar o vermelho etc.). Nisso está a diferença (ainda não captada por algumas autoridades).
Qual é a qualidade técnica da nova lei seca? Deplorável. A anterior (Lei 11.276/2006) era melhor? Sim. Apesar de tudo, a lei nova “pegou” porque a prevenção de acidentes e de mortes no trânsito depende não da gravidade abstrata da sanção (nem muitas vezes da qualidade técnica da lei), sim, da fiscalização, punição, conscientização (que decorre dos dois fatores anteriores), educação e engenharia (esta última pode proporcionar segurança nas ruas e estradas, assim como nos veículos).
A eficácia (bastante benéfica) da nova lei seca vai durar quanto tempo? O tempo que durar a fiscalização (isto é: a mobilização policial). Com o relaxamento dela, aumentarão os acidentes e as mortes? Sim, pois já vimos esse filme de 1999 até 19 de junho de 2008.
Conclusão: é uma falácia afirmar ou sugerir que a lei nova é mais rigorosa que a anterior. Mas, mesmo não sendo mais “dura”, como foi capaz de evitar milhares de acidentes e de mortes? Ela foi o pretexto para se desencadear a mais intensa fiscalização de trânsito em quase a totalidade do país. Isso é o que vale. A lição a ser difundida é esta: o segredo do sucesso de uma lei está no seu efetivo cumprimento, não no seu rigor formal. Que o legislador brasileiro (e alguns setores da mídia) aprenda (aprendam) essa lição de uma vez por todas. Seguramente deixariam de fazer ou de dizer bobagens inoculadas no imaginário popular brasileiro.
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