quarta-feira, 17 de junho de 2009

Resumo do livro DOM CASMURRO (machado de assis)

INTRODUÇÃO

Maior escritor brasileiro de todos os tempos, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) era um mestiço de origem humílima, filho de um mulato e de um lavadeira portuguesa dos Açores. Moleque de morro, magro, franzino e doentio, o maior escritor brasileiro se fez sozinho, adquirindo a sua vasta e espantosa cultura de forma inteiramente autoditada.

Ao estudar a obra de Machado de Assis, a crítica divide-a em duas fases bem distintas cujo marco deliminatório é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas publicado em 1881. Até essa data, a obra machadiana é marcante romântica, e nela sobressai poesia, conto e romances como Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Tais obras pertencem pois, à chamada primeira fase.


A partir de 1881, com a publicação das Memórias, Machado de Assis

muda de tal forma que Lúcia Miguel Pereira, biógrafa e estudiosa do

escritor, chega a afirmar que "tal obra não poderia ter saído de tal homem", pois, "Machado de Assis liberou o demônio interior e começa uma nova aventura": a análise de caracteres, numa verdadeira dissecação da alma humana. É a Segunda fase, fase perpassada dos ingredientes do estilo realista.

Além de contos, poesia, teatro e crítica, integram essa fase os romances seguintes, entre os quais está o nosso Dom Casmurro (1900): Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), seu último livro, pois morre nesse mesmo ano. Toda essa obra está ligada ao estilo realista, embora seja correto reconhecer que um escritor da categoria ao estilo realista, embora seja correto reconhecer que um escritor da categoria de Machado de Assis não pode ficar preso às delimitações de um estilo de época.

Conforme observa Helen Caldwell, Dom Casmurro é "talvez o mais fino de todos os romances americanos de ambos os continentes" ("perhaps the finest of all American novels of either continent")

Construído em flash-back, o protagonista masculino (Dom Casmurro), já cinqüentão e solitário, tenta "atar as duas pontas da vida" (infância e

velhice), contando a história de sua vida ao lado de Capitu, a qual acaba tomando conta do romance, dada a sua força e o seu mistério.

ENREDO DE DOM CASMURRO

A seguir, para que se possa acompanhar melhor a análise a que vamos

proceder neste trabalho, transcrevemos aqui o enredo elaborado por Marisa Lajolo, em "Literatura comentada", da Abril Editora:

Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romance mais

conhecidos de Machado. Narra em primeira pessoa a estória de Bentinho que, por circunstância várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Sua estória é a seguinte:

Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.

A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já o namoro com Capitu, filha dos vizinhos. Apesar de comprometido pela promessa, também D. Glóri a sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.

Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.

Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e,

durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma qual Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. Á medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal.

Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já mocó, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre e antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e

morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em usas dúvidas,

passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a

escrever de sua vida (o romance).

ORGANIZAÇÃO / ESTRUTURA

1) Dom Casmurro é narrado em primeira pessoa pelo protagonista

masculino que dá nome ao romance, já velho e solitário, desiludido e

amargurado pela casmurrice, conforme lhe está no apelido. A visão, pois, que temos dos fatos é perpassada da sua ótica subjetiva e unilateral: "tudo que sabemos do seu passado, de seus amores, de Capitu, só o conhecemos do seu ângulo" - observa o Prof. Delson Gonçalves Ferreira em estudo sobre Dom Casmurro. Em conseqüência disso, paira dúvida sobre o adultério de Capitu - dúvida que não se tem dissipado ao longo dos anos.

2) O romance , como já observamos, é construído a partir de um

flash-back, por um cinqüentão solitário e casmurro, "à la recherche de

temps perdu" ("à procura do tempo perdido"), o qual procura "atar as duas pontas da vida" ( infância e velhice). Perpassa. Pois, o romance uma atmosfera memorialista, dando a impressão de autobiografia, a qual, com o se sabe, não tem nada a ver com Machado de Assis.

3) O título do livro ("Dom Casmurro") reflete uma das características mais marcantes do protagonista masculino no crepúsculo da existência: a visão amarga e doída de quem foi traído e machucado pela vida, e, em

conseqüência disso vai-se isolando e ensimesmando. "Não consultes

dicionários, Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no

que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por

ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo" (Cap. I).

4) O romance se compõe de 148 capítulos curtos, com títulos bem

precisos, que refletem o seu conteúdo. A narrativa vai lenta até o capítulo XCVII, a partir do qual se acelera, como declara o próprio narrador, ao dar-se conta da sua lentidão: "Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegares ao final" (Cap. XCVII).

5) Assim, pois, até o capítulo XCVII, quando o narrador sai do seminário, "com pouco mais de dezessete anos", focaliza-se, em câmera lenta, a infância e a adolescência, dada necessidade do narrador traçar o perfil dos protagonistas da estória (Bentinho e Capitu), revelando, desde as entranhas, o caráter e as tendências de cada um: afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom Casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: "Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca" (Cap. CXLVIII).

6) Quanto ao lugar em que decorre a ação, trata-se do Rio de Janeiro da época do Império: há inúmeras referências a lugares, ruas, bairros, praças, teatros, salões de baile que evocam essa cidade imperial. Por outro lado, há também ligeiras referências a São Paulo, onde foi estudar Direito o ex-seminarista Bentinho, e também à Europa onde morre Capitu, e mesmo aos lugares sagrados, onde morre Ezequiel (Jerusalém).

7) Cronologicamente falando, a narrativa decorre durante o segundo

Império, detendo-se mais o autor na inicia pela razão exposta no item 5.

Contudo, construído sob a forma de flash-back; “o que domina no livro não é esse tempo cronológico; é o psicológico, que se passa dentro das

personagens, dentro da própria vida”, observa o Prof. Delson Gonçalves.

Debruçado sobre a reconstrução da longínqua inicia de outrora, o solitário e magoado Dom Casmurro vai reconstituindo o “tempo perdido” de sua existência, filtrando os fatos sob sua ótica de cinqüentão amargurado, revivendo a vida subjacente, que jaz nas suas entranhas.

PERSONAGENS

Machado de Assis sempre foi um grande “arquiteto de personalidades” e, na sua imensa galeria de personagens famosas, Capitu se destaca como uma das mais bem criadas por ele.

1) Capitu. Ao longo dos anos, Capitu tem desafiado a crítica com seu

enigma, sutilmente criado por Machado de Assis. Até hoje, ainda devora quantos tentam decifrá-la, pairando a dúvida: Capita traiu ou não traiu Bentinho? A pergunta continua sem resposta, pois a versão que temos para julgá-la nos é dada por um narrador suspeito - um marido envenenado pelo ciúme e de imaginação bastante fértil, como revelam muitas passagens do livro. Por outro lado, revelando um dos traços mais marcantes da psicologia feminina - a capacidade de dissimu1ação de que é dotada a mulher, Capitu, com seus “olhos de ressaca” e de “cigana oblíqua e dissimulada”, contribui ainda mais para fortalecer a dúvida: ela sabe sair-se bem de situações difíceis - ela sabe dissimular, como no episódio do penteado e da inscrição no muro.

Inteligente, prática, personalidade forte e marcante (ela era muito mais

mulher do que Bentinho, homem), Capitu acaba se tomando a dona do

romance: forma, inicialmente, com o narrador, um “duo terníssimo” e,

depois, possa a constituir o centro do drama do protagonista masculino, com a entrada em cena de Escobar (“trio") e de Ezequiel (“quattuor”).

No final, acusada pelo marido enciumado, revela-se nobre e altiva ao não responder as acusações. O seu silêncio confere a ela grandeza e contribui mais ainda para acentuar a dúvida que paira sobre seu adultério.

2) Dom Casmurro. O perfil do protagonista masculino pode ser

acompanhado em três fases distintas: Bentinho, Dr. Bento Fernandes

Santiago e Dom Casmurro.

Bentinho revela-se unia criança/adolescente marcado pela timidez, sem

muita iniciativa e bastante dependente da mie. Tinha uma imaginação

fertilíssima, como no capitulo XXIX (O Imperador). Levado para o seminário para ser padre (promessa da mãe - D. Glória), quando trava amizade com Escobar, Bentinho, com ajuda de J Dias, abandona a carreira sacerdotal e ingressa na Faculdade de Direito, em São Paulo.

Formado aos vinte e um anos, ele é agora o Dr. Bento F. Santiago, bem posto na vida, financeiramente rico (riqueza muito mais de herança do que de trabalho), casado e feliz com Capitu, quando canta na ópera da vida um “duo terníssimo”.

Depois, surge o filho (Ezequiel) e começam a aparecer os problemas: o

“duo ternissimo” da ópera da vida vai cedendo lugar ao melodrama do “trio” e “quattuor” das dúvidas e incertezas. É a vez da fase casmurra, marcada pela solidão, pela mágoa e pela amargura.

3) D. Glória. Mãe de Bentinho, cedo assume as rédeas da casa com a

morte do marido, o qual deixa a família bem amparada. Ao longo do

romance, D. Glória, revela-se religiosa, apegada às tradições e ao passado, conforme observa o narrador: “Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas maneiras, velhas idéias, velhas modas Tinha o seu museu de relíquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas moedas de cobre...”

D. Glória era, pois, unia boa senhora - uma santa, santíssima como diria o José Dias.

Morando com D. Glória destacam-se na narrativa Tio Cosme, viúvo como ela, e Prima Justina, igualmente viúva: “era a casa dos três viúvos”; além desses, pode entrar aqui também o Padre Cabral, muito amigo de Tio Cosme, com quem ia jogar à noite.

4) José Dias. Era agregado da família e gostava muito de Bentinho.

Bajulador e de idéias chochas, realçava-as com superlativo, que passa a

ser sua marca registrada: “José Dias amava os superlativos” e usa-os com freqüência ao longo do romance, inclusive na hora de morrer quando se refere ao dia como “lindíssimo “.

5) Escobar. Muito amigo de Bentinho (colegas de seminário), Escobar era casado com Sancha e revela-se um tanto quanto misterioso: teria

participado do “trio” cantado por Dom Casmurro, formando o triângulo amoroso da suspeita do narrador? Fica a dúvida e a mágoa, como revela Dom Casmurro no capitulo final, já que Escobar foi tragado pela morte (afogamento), sem possibilidade de defender-se da acusação.

6) Ezequiel. É o filho de dom Casmurro com Capitu, pejorativamente

chamado pelo pai dc “filho do homem”. Gostava de imitar e imitava muito bem sobre-tudo Escobar. Vitima da suspeita do pai, acaba sendo afastado, assim como a mãe, para a Suíça, tendo morrido perto de Jerusalém, como arqueólogo. Além desses, destacam-se ainda o Pádua, pai de Capitu, o qual era um modesto funcionário público, e sua mulher, Fortunata, muito econômica, também forte e cheia como a filha Capitu.

ESTILO DO AUTOR/LINGUAGEM

O estilo de Machado de Assis, marcado pela sobriedade, correção e

concisão, apresenta traços inconfundíveis, que vamos alistar.

1) A linguagem de Machado de Assis é marcadamente acadêmica:

clássica, bem cuidada, regida pelas normas de correção gramatical.

Entretanto, em alguns pontos, tal como ocorre no Modernismo, ele registra aspectos típicos da língua da personagem, como nesta fala de um vendedor de cocada:

- Sinhazinha, qué cocada hoje?

- Cocadinha tá boa...

2) Outra marca do estilo machadiano é a tendência para a frase

sentenciosa e proverbial, como aquela em que compara a vida com uma

ópera, atribuída ao tenor Marcolini: “A vida é uma ópera”.

3) Outro aspecto interessante é o uso freqüente de alusõees, referências e citações que vão como que confirmando as suas idéias e pensamentos, o que, por outro lado, revela bem a espantosa cultura e erudição de Machado de Assis, adquiridas de forma autodidata como vimos.

4) Ao longo das suas narrativas, Machado de Assis (ou o narrador que

conduz a estória), sempre gostou de estabelecer uni diálogo com o(a)

leitor(a): conversa com ele(a), dá-lhe conselhos, pondera e explica: “Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina...” (Cap. CXLVIII).

5) Outra coisa que chama e atenção são as suas personagens, quase

sempre bem situadas na vida, sem necessidade de trabalhar; aliás, o único trabalho que fazem é serem personagens de Machado de Assis, como observou alguém. Por outro lado, movem-se lenta e pausadamente, sendo quase sempre objeto de observação e análise do autor: são gente muito mais de reflexão do que de ação.

6) Apresentando, via de regi-a, uma visão amarga, pessimista e niilista da vida humana, Machado de Assis sempre se revela sarcástico e irônico na sua obra: desmascara o ser humano na sua hipocrisia e torpezas, desnudando-o nas suas entranhas; desmistifica crenças e instituições sacralizadas pelos tempos; questiona o sentido da vida. Tudo se desfaz e se desmorona ante o seu olhar aquilino e arrasa-

dor: até mesmo uni casamento que parecia sólido e embasado no pilar do amor.

ESTILO DE ÉPOCA

Como observamos no início (introdução), Dom Casmurro se enquadra na segunda fase machadiana, na qual sobressaem traços do estilo realista.

1) Os romances realistas sempre se fundamentam num caso de adultério,

como se pode ver nos diversos autores da época (Eça de Queirós, Aluísio Azevedo etc). Em Dom Casmurro é exatamente a suspeita de adultério que sustenta o enredo do romance. Tudo se constrói em torno desse possível adultério de Capita.

2) Entretanto, não há uma preocupação excessiva em contar a estória, preocupação maior é com a análise, uma análise dissecante e profunda,

em que o escritor procura desnudar a personagem e revelar as suas

entranhas. Sem dúvida por isso, Machado de Assis retroage à infância (ab ovo), tentando buscar a origem do problema focalizado.

3) Por essa razão, a narrativa é lenta, pausada - anda bem devagar. Aliás, o próprio Machado de Assis reconhece isso, ao declarar em passagem famosa de Memórias póstumas de Brás Cubas que vale também para Dom Casmurro: “...o livro anda devagar; tu (conversa com o leitor) amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”

4) Embora adote a primeira pessoa como técnica narrativa, o narrador de Dom Casmurro se coloca à distância: no extremo da vida (velhice), o

protagonista masculino reconstitui o seu passado, assumindo assim um

ângulo de visão marcado pela objetividade. Embora seja personagem da

estaria e participe dela, o narrador coloca-se fora e ausente enquanto narra e reconstitui os fatos (“flash-back”).

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

Muitos aspectos temáticos podem ser detectados na obra de Machado de Assis, que nunca foi escritor de grandes teses. É um estudioso da alma humana, que ele procura analisar a fundo e de foi-tua dissecante. Ao longo de Dom Casmurro muitas idéias interessantes vêm apresentadas.

1) Apoiando-se numa frase de um tenor, Machado de Assis declara que “a vida é uma ópera”. Com efeito, a existência humana é perpassada de fases, o que evoca bem, como a vida de Dom Casmurro, os atos de uma ópera: há sempre uma fase de “solo”, marcado por hesitações e buscas, e unia fase em que se vive um “duo terníssimo”, cm que o eu e o outro (Bentinho e Capitu) se aproximam e se harmonizam; depois a coisa se complica com a presença de um terceiro (Escobar), que se instala para formar o triângulo que desfaz a unidade; enfim surge um quarto (Ezequiel), que esfacela de vez o “duo” da união harmoniosa de outrora. Tudo se vai e se esvai pela vida, e na alma humana vão ficando as mágoas e ressentimentos dos sons plangentes que se desfazem na solidão abissal.

2) Tal como ocorre em “Conto de escola” (conto machadiano que integra o volume Várias Histórias), Machado de Assis vê a infância como o pilar que sustenta o adulto: o caráter e as tendências se forjam no forno da infância. Como ele dizem Memórias Póstumas, “o menino é pai do homem”. É o que se vê em Dom Casmurro. O autor dedica praticamente meio romance à infância, com o fim de mostrar “ab ovo” o embrião do caráter das personagens principais e concluir que a Capita menina estava dentro da adulta, “como a fruta dentro da casca”.

3) Ao apresentar o perfil de Capitu, Machado de Assis revela traços da

psicologia feminina: a arte de dissimular e a capacidade que tem a mulher

para sair-se bem de situações embaraçosas, como, aliás, se pode ver

também em Quincas Borba com Sofia. e outras obras machadianas. Essa capacidade de dissimulação de Capitu, sem dúvida, contribui enormemente para deixar no leitor de Dom Casmurro a dúvida que paira no final do romance: houve ou não houve adultério?

4) Apesar do “duo terníssimo” de Bentinho e Capitu, Dom Casmurro é um romance de velhos e solitários (D. Glória, Tio Cosme, Pe. Cabral, José Dias, Prima Justina, além do nosso casmurro narrador). Como é próprio de Machado de Assis a velhice no livro é perpassada de uma visão amarga e melancólica, dominada por magoas e ressentimentos. Sem dúvida, é licito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca na casmurrice e na solidão.

5) Tudo vai-se desfazendo com o crepúsculo da existência humana: a

graça, a beleza, as flores de antanho; pela vida vazia, vão ficando as

lágrimas, a cinza, o nada. Vista de uma perspectiva pessimista (como é

freqüente em Machado de Assis), a velhice é perpassada de amargura.

solidão e sensação de vazio e perda qual se acentua e dói ainda mais com a consciência da irreversibilidade do tempo.

6) E impressionante em Dom Casmurro a ação devastadora do tempo

sobre coisas e pessoas. Poucos ficam, corno o desencantado Dom

Casmurro, para contar a história: todos são devorados pela ação voraz e demolidora do tempo - todos morrem. E quem fica vivo, como Dom

Casmurro, é atormentado pela mágoa pelos ressentimentos e sobretudo

pela solidão catacumbal da casmurrice e do desencanto.

7) Como é próprio da literatura realista (e sobretudo de Machado de Assis) um dos propósitos do livro é desmascarar o ser humano, revelando a precariedade e a hipocrisia das relações sociais. Em entrevista à Folha de São Paulo (3/8/91) com o ensaista inglês John Gledson, o Prof. Luiz Roncari (autor de Assim não brinco mais) observa e pergunta: “A questão do adultério, traição ou não, só ganha importância mesmo no último terço do livro, na parte efetiva da intriga, mas a mentira está muito presente em todo o livro. A verdadeira questão não seria: como a mentira é fundamental para a manutenção das relações sociais, das relações humanas?”

8) Em suma, em Dom Casmurro pode-se ver um perfil da sociedade da

época (e certamente de hoje), corno afirma o ensaísta John Gledson no

prefácio de seu livro Machado de Assis: impostura e realismo: “Este livro procura descobrir as intenções de Machado em Dom Casmurro. Seu engenho e inteligência superiores mio são postos em dúvida; mas espero mostrar que o que lhes confere a agudeza, a lâmina pontiaguda, é a sua visão da sociedade na qual se criou, na qual teve muito sucesso

profissional, mas que - em um nível que só encontra expressão em suas

maiores obras - talvez detestasse”.

9) Outro ponto que se destaca em Dom Casmurro é a religião, a começar pelo próprio nome do narrador (Bento, Bentinho) e Capitu, que “está bem próximo de capeta”, conforme observa o Prof. Antônio Dimas, da USP. Sem perfilar unia linha anticlericalista (tão em voga na época), “a gente não pode deixar de levar em conta a religião no livro”, diz o Prof. John Gledson. “E o único romance de Machado onde a religião católica aparece com tanta importância. Em Helena, a religião é um pouco abstrata Mas aqui é o catolicismo, com suas Aves-Marias, seus Padres-Nossos, com seus santos, seminários etc. Ele cita a Bíblia de um jeito terrível As vezes cita São Pedro (sic) no seu momento mais anti-feminista - em que as mulheres devem estar sujeitas a seus maridos -, para reforçar o seu ponto de vista. Ou seja, é um livro que retrata o catolicismo e retrata mal, evidentemente. Isso está na linha de Eça de Queirós só que mostra como a religião funciona na vida Intima das pessoas”.

10) Confrontando com os romances românticos, que nos passam uma

visão idealizada do amor e do casamento (como é próprio do Romantismo), Dom Casmurro mostra o lado terrível, contundente, patético (e real?) do casamento, do amor e da vida. Embora a vida humana possa ter os seus encantos (é perfeitamente possível o “duo terníssimo” do casamento, da amizade - das relações sociais), a visão apresentada por Machado de Assis acerca da vida (especialmente do casamento, do amor e da amizade) é amarga e niilista, filtrada pela ótica de uni narrador casmurro, ressentido e magoado pelas trapaças da sorte. Distante do “happy end” dos romances românticos, cm que o casamento é uma verdadeira comunhão de amor, em Dom Casmurro o casamento é simplesmente uma comunhão de bens, que “dura quinze meses e onze contos de réis”, como disse o cético Brás Cubas.
autor: Prof. Teotônio Marques Filho


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